Enquanto o tema não é tratado como problema de saúde pública, milhares de mulheres sofrem com a criminalização e falta de assistência do Estado

Reportagem: Clarice Dantas

Em entrevista especial ao Observatório, a pesquisadora Nathália Ziolkowski explica questões relacionadas à criminalização do  aborto no Brasil e destaca a importância da continuidade da luta pela autonomia reprodutiva feminina. 

Nathália Ziolkowski Eberhardt é graduada em Ciências Sociais pela UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul), é Mestre em História pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados). Atua como ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras no Mato Grosso do Sul (AMB-MS) e da RENFA – Rede Nacional de Feminista Antiproibicionista.

Como pesquisadora, investigou as práticas de aborto de mulheres nas fronteiras do Brasil com Paraguai e Bolívia.

O trabalho resultou na dissertação  “Fronteiras do corpo: Um estudo sobre a história das mulheres e as práticas de aborto nos espaços de margem entre Brasil-Paraguai e Brasil-Bolívia (1980-2005)”.  O estudo destaca o debate sobre os métodos abortivos mais recorrentes nos espaços de fronteira do Brasil e destaca um problema que é recorrente das metrópoles aos rincões do país.

Desde 1990, o aborto inseguro é considerado um problema de saúde pública pela Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial de Saúde (OMS). Segundo o Instituto Alan Guttmacher (IAG), que analisa a questão do aborto no cenário mundial, 1 milhão de mulheres abortam no Brasil por ano.

Um levantamento da OMS indica que 21% das mortes relacionadas com gravidez na região da América Latina resultam de complicações advindas do aborto não seguro

Na entrevista para o Observatório, a cientista social Nathalia Ziolkowski Eberhardt conta que a questão do aborto no Brasil está ligada intrinsecamente a fundamentalismos religiosos e políticos.

“A criminalização do aborto está totalmente ligada a uma postura impositiva de crenças e compreensões de que o corpo da mulher é público e de que podem fazer escolhas no nosso lugar”, afirma.

Descriminalização e legalização do aborto

No Brasil, apesar de o aborto ser crime, sendo permitido sob muita resistência em casos de acefalia do feto e estupro, milhares de mulheres realizam o procedimento de interrupção da gravidez.

O aborto é um evento normal na vida das mulheres, e o procedimento clandestino resulta em milhares de mortes.

Quando questionada sobre as diferenças entre descriminalização e legalização do aborto, a pesquisadora Nathalia Ziolkowski nos ajuda a compreender essas particularidades.

“Descriminalização é quando não se coloca mais na cadeia a mulher que pratica o aborto e o profissional responsável. Legalização diz respeito a uma responsabilidade maior do Estado, quando o aborto está legalizado ele precisa oferecer um serviço de aborto seguro para mulheres e sua existência precisa ser divulgada”, explana Nathalia.

A legislação ao tornar o aborto crime, impede que mulheres façam o procedimento de forma segura, o que coloca a vida de muitas delas em risco, principalmente o grupo de mulheres mais pobres, sem acesso a serviços de saúde.

Aborto como questão de saúde pública

Ainda que haja exceções o debate é evitado por grande maioria da população brasileira e o direito das mulheres sobre o próprio corpo é severamente questionado.

Dados do 13º Anuário de Segurança Pública contabilizaram que em 2018 o Brasil registrou 66.041 mil casos de violência sexual, sendo um quantitativo de 180 estupros por dia. Mais da metade das vítimas eram meninas menores de 13 anos de idade.

No último dia 8 de agosto, uma menina de 10 anos grávida de 3 meses, deu entrada no Hospital Estadual Roberto Silvares no Espírito Santo. A criança foi estuprada pelo tio e era violentada a pelo menos 4 anos.

A criança realizou o procedimento em Recife pois profissionais do Espirito Santo se recusaram a prosseguir com o aborto mesmo com autorização da Justiça. O episódio ficou conhecido nacionalmente depois que extremistas religiosos protestaram na porta do hospital para que o procedimento não ocorresse.

Segundo Nathalia, o aborto precisa ser visto como uma questão de saúde pública porque “o estupro é um crime bárbaro, o estuprador um criminoso e isso é caso de polícia. Agora a mulher que passa por uma situação de violação, violência psicológica, física e de tortura é um caso de saúde pública”, explica a cientista social.

Nathalia ressalta ainda que a OMS define saúde como um estado completo de bem estar físico, mental e social e “uma mulher com uma gravidez indesejada não está em sua plena condição física e mental”.

Ela fala ainda ao Observatório TV que a clandestinidade também é um dos fatores que implicam em sérios riscos para a saúde da mulher.

“Os motivos que as levam a interromper uma gravidez não são menos significativos que o impacto de agir na ilegalidade quando elas recorrem ao aborto ilegal, mesmo correndo riscos de morte”, ressalta Nathalia. 

Debater para entender

A cientista social ouvida pelo Observatório acredita que para que o aborto seja legal no Brasil é necessário um debate amplo. “Precisamos falar mais sobre o aborto, ainda é muito tabu e acontece todos os dias no nosso país”.

Uma caderneta de 20 anos de pesquisa sobre aborto no Brasil elaborada pelo Ministério da Saúde aponta que de 50% a 80% de mulheres que induziram o aborto utilizaram o medicamento Misoprostol (cytotec).

A pesquisa mostra logo depois que após a entrada do medicamento nas práticas abortivas, ele veio a ser o método mais procurado por mulheres que desejam interromper a gravidez pois traz menores riscos a saúde. 

No entanto, esses estudos não demonstram o que acontece em clinicas clandestinas e muito menos como mulheres tem acesso as práticas.

Segundo a pesquisa “sabe-se pouco sobre o universo simbólico das mulheres que abortam, sobre o processo de tomada de decisão e sobre o impacto em sua trajetória reprodutiva ou em seu bem-estar”.

Essa situação reforça a necessidade do tema ser incorporado no debate como questão de saúde pública, como forma de garantir que a questão incorpore a ideia do aborto seguro como direito  das mulheres. 

Confira a entrevista completa da cientista social ao Observatório TV: