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                                                                                  Reportagem: Thales Lima 
     
Integrantes da Comissão Estadual da Verdade, os pesquisadores Dorival da Costa e Maura Legal são os entrevistados do Observatório TV para tratar das memórias sobre o período da ditadura no Estado;

No dia 1 de abril de 1964, os militares destituem o então presidente João Goulart e assumem o poder no Brasil. 

É curioso o fato que, no dia da mentira, tem início a ditadura militar no Brasil, que dura até o ano de 1985. 

Durante o período, foi decretado o fim de eleições diretas, a cassação de opositores, a perseguição da liberdade de comunicação, de associação e reunião das pessoas. 

A oposição durante o regime era fortemente reprimida. Torturas e desaparecimento que ainda não foram totalmente esclarecidos até os dias de hoje.

Durante a ditadura, o Amapá ainda era território federal e o Governo Militar tinha muita influência nas decisões e nas ações de repressão, as perseguições, prisões e torturas que ocorreram no estado.

Na entrevista ao Observatório TV, os pesquisadores Dorival da Costa dos Santos e Maura Leal apresentam especificidades da repressão, além de destacaram a memória de luta e resistência à ditadura no Amapá. 

Os pesquisadores relembram atores, grupos e organizações que fizeram parte da história sobre a Ditadura, além de apontar registros levantados durante a atuação da Comissão Estadual da Verdade
Francisco das Chagas Bezerra, Chaguinha. 

Em 2013, a Comissão Estadual da Verdade nasce como parte de um movimento presente todo país para  resgatar e investigar repressão, desaparecimentos e outras violações de direitos humanos durante a ditadura militar. 

O território Amapaense no período de ditadura militar
Atualmente, o estado do Amapá sofre reflexos de sua origem como território federal.

A pesquisadora da Unifap, Maura Leal, foi integrante da Comissão Estadual da Verdade e explica que havia um discurso muito forte durante a gestão do presidente Getúlio Vargas de desmembramento de territórios federais.

O Amapá foi formado a partir de municípios do território paraense. A pesquisadora explica que pela extensão territorial e populacional, o estado se tornou cada vez mais dependente do Governo Federal, pela dificuldade de se sustentar economicamente.  Essa dependência gerou muita influência do Governo durante a ditadura.

Dorival da Costa, pesquisador da Universidade Federal do Amapá e presidente da Comissão Estadual da Verdade, diz que para analisarmos a ditadura no Amapá é preciso entender a sociedade que aqui existia.

Em 1964, ano do Golpe Militar Brasileiro, o Amapá era o que os estudiosos chamam de “sociedade tradicional”, ou seja, demograficamente pequena e baseada na economia rural, que consistia em relações de vizinhança e proximidade.

Os estudos sobre a ditadura militar brasileira são baseados em sociedades modernas e metropolitanas.  Há poucos dados  sobre como era a realidade de repressão em cidades mais rurais e interioranas.

O pesquisador Dorival da Costa comenta que, no Amapá, haviam características que diferenciaram o modo como a repressão política operava. A principal característica foi o uso do imaginário popular para as práticas de opressão e tortura.

“A diferença no Amapá, não é que seja singular, mas é um exemplo de como a ditadura se metamorfoseia, como ela se adapta aos diferentes tipos de estrutura social, no nosso caso, foi o fato do uso do nosso imaginário como elemento ditatorial de opressão e terror”, conta Dorival.

A pesquisadora Maura Leal explica que, mesmo antes do golpe militar de 1964, no território amapaense já existia a perseguição política de opositores. Ela conta que um dos fundadores do PTB, que era um partido da oposição, relatou como funcionava a política no estado de 1944. 

“Ele relata que foi um momento de muitas perseguições, perseguição dos jornais e do povo. Em 1962, ele tem relato de perseguição e queima de arquivos por agentes do Estado”, relata.

Memórias da ditadura militar no Amapá
O pesquisador Dorival da Costa conta que nos primeiros momentos do golpe militar, já foram registrados casos de violência. Os comunistas declarados foram usados como bodes expiratórios para o início das torturas, prisões e morte. 

Em seguida, os servidores públicos que possuíam um posicionamento mais democrático também foram perseguidos.

“A ditadura foi de 1 de abril de 1964 até 1985, não foi uma crescente, já se iniciou bruta”, explica o professor.

Pelo Brasil, centros de tortura se concentravam em departamentos de polícia ou locais abandonados.

No Amapá, o principal lugar para práticas de tortura foi a Fortaleza de São José. 

“A Fortaleza ganha essa característica digna de medo, porque passa a ser um local que ganha essa representação no contexto da ditadura, mas não era o único. Vários lugares foram usados, mas nenhum com tanta intensidade quanto a Fortaleza”, explica a professora e pesquisadora Maura Leal.

A Fortaleza era o fim para muitos presos políticos, que depois de adentrar aqueles muros de pedra, nunca mais foram vistos. Hoje um ponto turístico tratado como cartão de Macapá, a Fortaleza foi local usado pela repressão. Essa informação é pouco conhecida e divulgada.

A Comissão Estadual da Verdade foi importante, nesse caso, por permitir acesso à memória de repressão e de violência política no Amapá. “A partir desse trabalho, é que a gente consegue fazer aquela política que é fundamental em cada democracia, que é reconhecer o passado para que ele nunca mais aconteça, para que não se repita”, conta a pesquisadora.

Dorival conta que a Comissão Estadual da Verdade apresentou a ideia de um memorial na Fortaleza de São José de Macapá para a lembrança dos desaparecidos e mortos políticos.

 “Isso para que as pessoas que visitam a Fortaleza possam compreender que ela é um grande patrimônio, que ela representa nossa identidade, tem essa força identitária, mas que ela também foi usada por agentes militares como esse lugar de tortura, de medo de perseguições”, explica ele.

Resistência
Assim como a ditadura, a resistência  se organizou de acordo com o cenário regional. No Amapá, não existia a imagem de resistência armada e organizada que assistimos em filmes ou estudamos em livros de história. 

Quando se fala de resistência à ditadura brasileira, em Macapá eram resistência os movimentos estudantis e sindicatos, com foco em ações culturais, como músicas e poesias libertárias.

“Não era possível resistir nos moldes de partidos clandestinos, a resistência armada, porque o anonimato é impossível. Esse modelo de resistência, de enfrentamento direto com ações diretas contra a ditadura, é inviável na realidade do amapaense nos anos 60”, explica Dorival.

Com a criação do estado do Amapá, os jovens que vivenciaram o golpe militar foram da primeira geração de amapaenses nascidos nessa terra. É essa população que faz parte desse processo de resistência.

Mortes e desaparecimentos
“Dos mais intelectualizados aos menos intelectualizados, que se dispuseram a testemunhar pra gente na Comissão da Verdade, todos emocionaram-se ao relembrar o que sofreram durante a ditadura. E  50 anos depois,  as pessoas ainda sofrem”, conta o professor Dorival.

De 1965 a 1985, foram anos marcados de medo e terror. Durante os anos de 1980 e 1990, as pessoas evitavam as redondezas da Fortaleza de São José por medo. A violência, além de física, foi simbólica.

As vítimas da ditadura no Amapá permanecem desaparecidas. “Nós não sabemos nem o nome dos nossos desaparecidos, que são os indígenas por exemplo que sofreram, foram dizimados, foram mortos sem que a gente pudesse sequer identificar”, explica Dorival.

Segundo estudos da Comissão Estadual da Verdade, os indígenas que viveram no local de cruzamento da BR-156 tiveram sua população reduzida à metade durante a ditadura militar. Essas pessoas sumiram sem que fossem deixados rastros.

 A pesquisadora Maura Leal explica que um ponto importante foi o apagamento da história. A ausência de documentos e fontes é a confirmação que a ditadura militar no Amapá existiu de forma violenta.

 Engasga-Engasga
A ditadura se fundou no Amapá entrelaçada ao imaginário popular. Lendas como a de Matinta Pereira e Curupira deram vida ao Engasga-Engasga. Em maio de 1973, iniciou-se uma lenda de um homem que no cair da noite atacava mulheres nas ruas da cidade de Macapá. Esse ser fantasioso possuía poderes como dar grandes saltos e visão noturna, além de se teletransportar.

A verdade é que, apesar de toda essa fantasia, excluindo os poderes mágicos, o Engasga-Engasga foi uma invenção para dar forma a uma operação do estado para a implementação de uma polícia militarizada no Amapá.

A Operação Engasga consistia em uma encenação de agentes militares, que não eram conhecidos no estado. Os agentes encenavam ataques para disseminar o terror. Os Engasga-Engasga eram os “comunistas” que, potencialmente perigosos, precisavam ser contidos.

Como no Amapá não existia uma resistência armada, não havia necessidade de um modelo militarizado de controle. Logo, a operação surgiu no gabinete do secretário de segurança, a fim de justificar a necessidade de uma polícia militar no estado.

Anterior a esse fato, existia a Guarda Territorial que resolvia os conflitos de forma paralela ao sistema judicial no então território.

“Os conflitos se resolviam entre as pessoas e famílias. A PM, já estabelecida em outros territórios federais, possuíam uma outra noção de policiamento, que é militarizado e não comunitário, com uma aparência profissional e muito mais intensa”, explica o professor Dorival.

Em 1974, a Polícia Militar foi implementada formalmente no estado do Amapá.

Herança da ditadura
A pesquisadora Maura Leal explica que a característica autoritária do estado brasileiro é uma herança da ditadura.

A pesquisadora explica que a história brasileira é constituída de rupturas, mas também de continuidades.

“Esse modelo de polícia que temos hoje é herança do Estado brasileiro que se acentua e que não começa com a ditadura, mas muito antes. O que a ditadura fez foi consolidar melhor essa política”, explica.

Torturas, mortes e desaparecimentos ainda são presentes nas camadas mais marginalizadas da sociedade.

Confira a conversa dos pesquisadores da Unifap e integrantes da Comissão Estadual da Verdade, Maura Leal e Dorival da Costa, com o Observatório TV. 

Na Parte 1 da entrevista, os pesquisadores apresentam as especificidades e o modo como os aparatos de repressão atuaram no Amapá, assim como destacam as formas de resistência ao regime. O destaque é para o impacto da ditadura entre os povos indígenas. Confira:

Na parte 2 da entrevista, os pesquisadores Dorival da Costa e Maura Leal explicam a participação de Amapaenses na Guerrilha do Araguaia, a Operação Engasga e a herança da ditadura na contemporaneidade. O destaque é para um personagem importante no contexto de repressão no Amapá, o Francisco das Chagas Bezerra, Chaguinha, que dá nome à Comissão Estadual da Verdade.  Confira: