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Reportagem: Arthur Corrêa

Pessoas transexuais relatam as precariedades da rede de saúde amapaense no atendimento das demandas específicas desse segmento

Maria Luiza Brito nasceu em um corpo masculino, e como qualquer outra criança, nunca se importou muito em descobrir o que isso significava, mas mesmo tão pequena, sentia que algo em si era diferente. “Sempre vivi como as minhas primas viviam, eu só me dei conta de que não era como elas quando elas menstruaram e eu fui a única que não menstruei”, lembra Maria Luiza.

Ao chegar à adolescência, percebeu com clareza que o corpo que tinha não a pertencia, mas guardou para si com receio da  família. Esperou até o fim do ensino médio e o início da vida acadêmica para assumir-se como uma mulher trans.                                                                               

“Lembro que, o melhor dia que tive, foi no primeiro dia que pude me vestir da forma que eu queria. Ao mesmo tempo que eu sentia muito medo, também me senti muito bem”, comenta Maria Luiza.

“Desde então, fui feliz todos os dias. Acho que uma das poucas certezas que tenho é essa, sou mulher. É algo que nunca vai mudar pra mim. Mesmo com todas as dificuldades, eu não me vejo desistindo, não me vejo vivendo outra vida que não essa”, completa.

Hoje com 22 anos, Maria Luiza Brito é acadêmica de Teatro na Universidade Federal do Amapá e faz tratamento hormonal para auxiliar na sua transição de gênero. Até chegar a essa etapa, contudo, foi preciso travar uma guerra com o cistema – termo utilizado para se referir ao sistema social formatado por uma maioria de pessoas chamadas “cisgêneras”, aquelas se identificam com o gênero designado no nascimento.

O termo transexualidade ou transgeneridade são comumente usados para caracterizar a identidade de gênero. “São pessoas que nascem com um determinado sexo biológico ou um gênero designado ao nascer, mas se enxergam com o gênero oposto, ou com nenhum gênero”, como explica a psicóloga Isadora Canto, especialista em Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal do Amapá.

Maria Luiza começou a transição de gênero de forma lenta; primeiro trocou as peças do seu guarda-roupa, esperou o cabelo crescer e pediu aos amigos próximos que lhe chamassem pelo seu nome social. Chegou até a comprar hormônios sem acompanhamento médico. “Eu sabia que tinha que usar hormônios, mas não tinha coragem, cheguei a comprar mas demorei a utilizar por medo”, confessa.

Automedicação, hormônios e saúde mental

Na época em que procurou atendimento hospitalar em Macapá, Maria Luiza se deparou com o primeiro obstáculo da busca pelo tratamento hormonal. “Não tinham conhecimento sobre a comunidade, na verdade até hoje, não se tem. Fui ao endócrino, mas ele disse que não podia me ajudar porque não era da área dele e ficou por isso mesmo”, declara Maria Luiza.

Em decorrência disso, Maria Luiza recorreu aos grupos de venda de hormônios nas redes sociais. “Lá, as pessoas trans se unem e dão dicas a respeito do tratamento de forma independente, falam dos tipos de hormônios, e o que pode e o que não pode usar”, explica.

Esta prática tem sido comum historicamente dentro da comunidade trans. No Brasil, na década de 80, as mulheres trans e travestis utilizavam clandestinamente hormônios e silicones líquidos industriais, em uma tentativa de se assemelharem às trans de Paris, que eram as referências das mulheres trans brasileiras na época.                                                      

O primeiro medicamento hormonal que Maria Luiza usou foi de fácil acesso, mas não obteve o resultado tão rapidamente. Então logo, fez a troca por outro mais eficaz: o Diane 35, medicamento normalmente feito para reposição hormonal e tratamento de acne.

Maria Luiza sentiu os primeiros efeitos colaterais logo no início. “Sentia cólicas abdominais, dores no corpo, sono e enjoo, mas como via o resultado, aguentei”, declara.

O segundo hormônio que trouxe impactos negativos para o corpo de Maria Luiza foi o Evra, medicamento utilizado como contraceptivo para evitar gravidez. O medicamento levou Maria Luiza ao hospital.

“Na primeira semana minha imunidade baixou, na segunda tinha muita ânsia de vômito. Fui hospitalizada por desidratação”, diz. 

Quando questionada sobre o tratamento hormonal com acompanhamento médico, Maria Luiza critica a resistência nos serviços de saúde para atendimento da comunidade trans. “As pessoas se recusam a aprender e isso acaba cansando”, diz. Atualmente, a rede de saúde pública do Amapá garante o acolhimento da comunidade trans com apenas um único profissional: o endocrinologista Renato Paulista.

Maria Luiza confessa que só chegou a ir ao hospital novamente quando conseguiu retificar todos os seus documentos. “Não me sentia à vontade. Mesmo tendo nome social, as pessoas não me respeitavam. E elas não se importam, porque não são elas que estão sendo constrangidas”, lamenta.

“Infelizmente a hormonização é cara, por isso, muitas recorrem a esses meios informais. Temos que pagar a consulta do endócrino, pagar os exames, os remédios… Não tem como manter. Como não temos uma gestão pública que faça o acolhimento da comunidade aqui no nosso estado, a hormonização com endócrino é um tratamento privilegiado; só mantém quem consegue pagar”, acrescenta Maria Luiza.

Discriminação e exclusão dos serviços de saúde

Além do tratamento hormonal, a psicóloga Isadora Canto explica que outra demanda da comunidade transexual é o atendimento à saúde mental.

 “Levando em consideração toda a dificuldade de acesso não só à saúde, como escola, oportunidade de empregos e, muitas vezes, até falta de vínculo familiar, essas questões de tentativas de aniquilamento da subjetividade trans podem trazer vários problemas emocionais como: ansiedade, depressão, bipolaridade, baixa autoestima, automutilação, dificuldade de socialização e de construção de vínculo e até mesmo suicídio”, explica Isadora.

Além da falta de serviços especializados e de estrutura para atender as demandas específicas da população transexual, o problema está na dificuldade de acolhimento desse grupo pelos serviços de saúde. Para a psicóloga Isadora Canto, há uma falta de empatia e preparo dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) para compreender a importância do nome social e para o atendimento especializado.

Desde 2006, a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS, chama a atenção para a necessidade de um atendimento acolhedor e livre de discriminação. Além disso, o Ministério da Saúde também publicou em 13 de agosto de 2009, a portaria nº 1820, que assegura o uso do nome social no SUS.

Em seu cotidiano, a comunidade esbarra na falta de preparo dos profissionais de saúde. “Observa-se que o despreparo profissional se dá desde o reconhecimento do nome social até a recusa do profissional em atender à solicitação dos pacientes trans”, aponta Alexander Oliveira, liderança do Coletivo de Homens Trans de Macapá.

Diante disso, é importante destacar que apenas a garantia do uso do nome social não basta para uma maior qualidade na prestação de serviços na rede pública de saúde. A reivindicação da comunidade trans é de atendimento humanizado e serviços básicos como o de orientação e acompanhamento para uso de hormônios.

De acordo com Alexander Oliveira, a recusa do uso do nome social pode causar a evasão desta população independente do ambiente que esteja inserido: escolar, hospitalar e familiar. Para o ativista, isso pode explicar a ausência desta população nos espaço das políticas públicas. 

De acordo com o Institute of Medicine, a falha formação dos profissionais de saúde para atender as necessidades e demandas da população LGBT proporciona a formação de uma barreira estrutural que diminui o acesso desta comunidade aos serviços de saúde ou adesão de qualquer tipo de tratamento na rede pública de saúde. 

Longe dos serviços de saúde,o adoecimento é a única certeza do segmento trans quando pensam em seu direito à saúde.