Lana Diniz – advogada, especialista em Direito Homoafetivo, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-AP, pós-graduanda em Estudos Culturais e Políticas Públicas. 

No último dia 21 de agosto, o site de notícias G1 publicou matéria sobre decisão da Vara de Execuções Penais da Comarca de Macapá que determinou à direção do Instituto de Administração Penitenciária (IAPEN) criação de um plano de acolhimento e custódia às pessoas LGBTI no prazo de 15 dias.

A determinação da criação deste plano decorreu de um caso concreto atendido pela Defensoria Pública do Estado do Amapá para que uma detenta trans, presa preventivamente na ala feminina, fosse transferida para a masculina.

A detenta escreveu uma carta narrando que se sentia desrespeitada e discriminada na ala feminina, em razão de ficar isolada do restante da população carcerária, ter contato apenas com agentes prisionais e estes não lhe chamavam pelo nome social.

A situação narrada não se trata de um caso isolado do Amapá, muito menos do restante do país, tendo em vista que apesar de o Brasil ter aderido a instrumentos internacionais como os Princípios de Yogyakarta, Declaração Universal dos Direitos Humanos; Convenção Americana de Direitos Humanos, Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes e seu Protocolo Facultativo, Regras Mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos;Regras Mínimas das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas; e Parecer Consultivo nº 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Além disso, no Brasil há norma que regulamenta a situação da população LGBTI privada de liberdade, como a Resolução Conjunta nº 1/2014 da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação. No entanto, o tema ainda é objeto muitas dúvidas no âmbito do Poder Judiciário e encontra-se pendente de análise mais profunda pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Encarceramento da população LGBTI

Os índices de violência praticada contra a população LGBTI são cada vez maiores, inclusive, o Brasil lidera o ranking de assassinato a população trans  em decorrência de um discurso homo/transfóbico cada vez mais crescente na sociedade, o qual se soma a uma discriminação interseccional, ligada à raça e classe por exemplo.

Assim, a população LGBTI, de modo geral, é extremamente estigmatizada, o que gera dificuldades para acesso à educação, emprego e saúde pública. Com efeito, alguns precisam recorrer a formas de sobrevivência clandestinas ligadas à prostituição, tráfico de drogas, etc., o que, por vezes, gera o encarceramento dessa população.

Com o encarceramento, a população LGBTI é submetida a mais humilhações e violação da dignidade humana, em razão da falta de local adequado para cumprimento de prisões cautelares e decorrentes de condenações, além da falta de formação adequada sobre questões de diversidade sexual e de gênero dos/as agentes prisionais.

Resolução Conjunta nº 01/2014 da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação

Nesse contexto, especificamente quanto à população transsexual e travesti, a Resolução Conjunta nº 01/2014 da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação, não confere um tratamento isonômico e igualitário, vejamos alguns dispositivos:

Art. 3º – Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.
§ 1º – Os espaços para essa população não devem se destinar à aplicação de medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo.
§ 2º – A transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico ficará condicionada à sua expressa manifestação de vontade.
Art. 4º – As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.
Parágrafo único – Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade.

Assim, de acordo com a resolução citada, as travestis devem ficar em espaços de vivência específicos (caso existam) dentro de unidades prisionais masculinas, desde que manifestem expressa vontade nesse sentido. Enquanto, no que tange às mulheres trans, devem ficar em presídios/alas femininas

Como o assunto vem sendo discutido no STF

Como há inúmeras decisões conflitantes quanto à aplicação da mencionada resolução conjunta, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT) propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 527 MC/DF) no Supremo Tribunal Federal, requerendo que custodiadas transexuais e travestis cumpram pena em estabelecimento prisional compatível com o gênero feminino, no caso das últimas, caberia opção por estabelecimento masculino ou feminino.

Em junho de 2019, o STF, através de decisão monocrática do Ministro Barroso, proferiu medida cautelar na mencionada ADPF determinando que as mulheres trans fossem transferidas para alas ou presídios femininos e, quanto às travestis, o Ministro resolveu, por falta de informações seguras, segundo ele, não deferir a medida de urgência requerida (transferência destas para ala/presídio feminino a depender da escolha da presa). Assim, na prática, as travestis continuam em presídios/alas masculinas ou em espaços de vivência específicos quando assim optarem.

Manifestação de vontade para quê?

Através da análise da medida cautelar proferida pelo STF e da resolução mencionada, fica claro que nenhuma das duas leva em consideração, de forma ampla, a manifestação de vontade da pessoa presa, posto que às travestis é imposto, até o momento, estabelecimento prisional masculino (e espaços de vivências específico para travestis e gays – onde houver, o que não é o caso do Amapá) e às transsexuais femininas os estabelecimentos femininos, sem levar em consideração a manifestação de vontade da pessoa privada de liberdade.

No caso da transexual que encontrava-se detida no IAPEN, apesar de estar em presídio feminino (como determinada a Resolução Conjunta nº 01/2014 e medida cautelar do STF na ADPF nº 527), esta narrou, em carta escrita de próprio punho, que seu nome social não era respeitado, que era isolada das demais mulheres da unidade prisional, inclusive, no horário e local de banho de sol, o que estava causando-lhe uma série de transtornos psíquicos a ponto de pedir sua inclusão em ala masculina do IAPEN, posto que já havia ficado reclusa nesta e narrou se sentir menos desrespeitada ali. Tal fato demonstra que a “determinação” do gênero não é suficiente para que se estipulem regras fixas para determinar o melhor local para cumprimento de prisões cautelares ou de pena.

Com efeito, somente com a oitiva formal e substancial da pessoa presa em cada caso pode-se resguardar seus direitos e sua dignidade.
Nesse sentido, para que os direitos das pessoas LGBTI e, especificamente das transsexuais e travestis, seja respeitado, faz-se necessária capacitação sobre questões de gênero/sexualidade não somente dos agentes do sistema prisional, mas também de outros atores do sistema de justiça criminal como as Polícias, Judiciário e Ministério Público.

* Contribuições e revisão: Cássio Borges – analista judiciário, pós-graduando em Direitos Humanos e em Estudos Culturais e Políticas Públicas.

*** O artigo não representa a opinião do Observatório da Democracia, Direitos Humanos e Políticas Públicas e tampouco da Universidade Federal do Amapá.