Henri Chevalier, Jornalista, especialista em Politica e Relações Internacionais e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, em Portugal

Em época de coronavírus, na qual o isolamento social é considerado pelos melhores especialistas de saúde mundiais e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a melhor forma de evitar-se contágios e mortes pela COVID-19, a tensão entre Economia, isolamento, trabalho e Saúde tornou-se eixo central das discussões, quer no espaço público, quer no privado.

Forçados à parada generalizada das atividades, muitos Estados têm visto de perto a chegada da crise, com as projeções de seus PIBs a cair consecutivamente enquanto as taxas de desemprego e pedidos de auxílio aos governos aumentam bruscamente.

Uma das soluções propostas é o trabalho à distância e a flexibilização de horários (muitas vezes com flexibilização de salários), levando a uma ressignificação do espaço e do tempo de trabalho. Com o teletrabalho, empresas que ainda não haviam percebido, agora percebem que podem reestruturar seu funcionamento com uso de aplicativos como Zoom, Whatsapp, Workplace, Amazon Chine, Google Hangout, Messenger, entre outros.

Apesar de grande parte da população estar lidando com esse tema pela primeira vez, não é um assunto novo, trazido como efeito colateral do coronavírus. É, isso sim, o aprofundamento de um processo que já acontecia e se agudizou nesta fase de transformação socioeconômica que o sistema capitalista passa atualmente.

Voltemos rapidamente no tempo, apenas para pegarmos a origem desse raciocínio. Assim, podemos lembrar como o trabalho é um conceito adaptável à realidade social de um momento histórico.

Exploração do Trabalho não veio com o Coronavírus

Na Antiguidade, as sociedades frequentemente apropriavam-se do trabalho dos inimigos conquistados para sustentar sua economia. Tratavam-nos como objetos ou animais, que estavam ali para obedecer e, portanto, construir sem questionamentos o que seus donos ordenavam.

Estava consolidado o conceito de escravidão.

Tempos depois, na Idade Média, este objeto virou servo, num upgrade garantido principalmente pela ética católica que não sabia como explicar a possibilidade de possessão de um filho de Deus por outro. Afinal, se Deus é pai de todos, como explicar que uns são mais filhos do que outros?

Estava consolidado o conceito de vassalagem.

E, na Idade Moderna, já movido por uma lógica capitalista, o trabalho desvincula-se da pessoa que o exerce, deixando de lado as lógicas de posse do período anterior e adotando o trabalho como mercadoria independente da pessoa. Isso permitiu o comércio e a barganha.

O trabalho livre – potencializado pelas indústrias e agricultura que matavam pessoas às centenas por exaustão – tornou-se regra. Não apenas pelo reconhecimento do ser humano como ser de direitos, mas também – e creio, principalmente – por ser um conceito de trabalho mais adequado àquele momento.

Hoje, século XXI, estamos em plena transformação social – potencializado dessa vez, certamente, pela Internet. E as lógicas de existência e trabalho, óbvio, se moldam a essa nova fase do capitalismo.

Pode-se chamar de Capitalismo digital, informacional ou comunicacional (a depender da linha teórica à sua escolha, de Dominique Wolton, Ramon Zallo, Dan Schiller, Manuel Castells entre outros), mas o fato é que estamos em um movimento de deixar para trás o capitalismo industrial e financeiro rumo a outra fase do sistema.

Esta nova fase, em vez de ser dominado por fábricas e bancos – ainda que estes não percam seu poder e sua parte na oligarquia internacional -, será dominada pelas empresas de comunicação, telecomunicação, aplicativos, redes sociais e tecnologia – ou seja, tudo o que trabalha com produção simbólica e construção de sentidos. E essas novas forças têm seus interesses específicos no que diz respeito ao trabalho, tentando virtualizá-lo e flexibilizá-lo ao máximo, inclusive como forma de legitimar o descarte daquela força de trabalho, quando necessário ao funcionamento da empresa.

Qual é a Novidade?

Essa lógica não é necessarimente nova, já que o que hoje até tem o nome de gig economy já acontecia com alguns profissionais liberais. Mas agora torna-se extremamente eficaz.

O discurso da liberdade sempre foi apelativo. É libertador o discurso aparentemente emancipatório de que você pode trabalhar o quanto quiser, quando quiser e ganhar o quanto merecer. Mas esse discurso, que ressalta as maravilhas de não ter patrão e não ter vínculos com empresas, esconde o lado perverso da perda de direitos conquistados a duras penas pela velha estrutura sindical que tem perdido espaço por seus métodos datados de atuação, organização e, claro, comunicação. E é a perda desses direitos e o lado negativo do que é chamada “uberização do trabalho” que saltam aos olhos nesta crise do coronavírus.

Os cortes empresariais começaram por um público bem definido: os temporários, os freelancers, os “livres”. Em momento de corte de custos e gastos é preciso “limar” para o bom desenvolvimento da empresa e, aos que ainda restam na instituição, trazer algum tipo de precarização.

Os empregados de plataformas como Uber já perceberam que essa lógica de independência que o discurso imprime está afastado da realidade.

Inclusive, em países como a França, por exemplo, um movimento iniciado em 2016 exigia a subordinação e reconhecimento do vínculo trabalhista com a empresa – o que foi garantido pela justiça francesa em março de 2020, numa decisão histórica que levou anos. Domésticos e construção civil também vêm em luta.

Mas as categorias vinculadas à classe média ainda estão em uma lógica construída pelo capitalismo financeiro – de que o risco traz mais lucros, ideia que pode ser materializada na lógica de funcionamento da bolsa de valores. Profissionais liberais então se vêem em maus lençois agora.

Em tempos de crises, como estamos, trabalhadores são avisados de um dia para o outro que não precisam mais vir – afinal, não há vínculo empregatício que garanta a estabilidade. Outros simplesmente vêem sua demanda de trabalho diminuir. Poucos encomendam projetos de arquitetura agora, por exemplo. É época de economia.

O circuito das artes está fechado – teatros, espetáculos, artes performáticas, circos, exposições, galerias, cantores de rua -, o que está de acordo até com uma lógica de desvalorização dessas atividades enquanto necessárias à saúde mental e psicológica.

E como estarão professores particulares, treinadores, psicólogos, personal trainers? Esses profissionais, em um grande twist, precisam agora de ajuda do mesmo Estado e da mesma estrutura (incluindo impostos) que muitos criticam quando estão em boa situação – as clássicas demandas da classe média.

A Ilusão da Diferença

A lógica de precarização do trabalho não é nova, apenas altera sua forma de atuar de acordo com a sociedade. Muitos ainda pensam que trabalho precário é sinônimo de trabalhos que usam a força física, como pedreiros ou lixeiros. Serão mesmo só eles ou também serão precários os designers, jornalistas, artistas, cientistas e outras profissões que são obrigadas a fazer freelas mal remunerados ou a aceitar baixíssimas condições de trabalho?

O discurso da liberdade em relação ao patrão, do controle de quanto recebe-se ao fim do mês, do controle do tempo e da vida – o seja, aquela lógica meritocrática traduzida pela imagem do trabalhador com um laptop no colo em uma praia paradisíaca da Tailândia com um belo drink ao lado, é construído para o bem do trabalhador ou da empresa?

Há muitas crises e problemas que podem ser colocados nas costas do coronavírus, mas a precarização do trabalho não é uma delas. O coronavírus é um catalisador do processo de transformação social do trabalho nesta migração para o capitalismo digital – ou comunicacional, ou informacional – em que estamos.

Neste tempo de quarentena, que tal pensarmos sobre isso?

Coletivamente, talvez cheguemos a algum lugar. Algum lugar bom, espero eu.

*O artigo não representa a opinião do Observatório da Democracia, Direitos Humanos e Políticas Públicas e tampouco da Universidade Federal do Amapá.