Reportagem: Ingra Vale Queiroz Tadaiesky

No Brasil, diariamente 320 crianças são vítimas de violência sexual; em 73% dos casos, o abuso acontece no espaço familiar;

A ideia do corpo infantil como objeto para uso de adultos, o machismo e a vergonha em denunciar são fatores culturais que protegem agressores e responsabiliza vítimas;

A exploração e o abuso sexual contra crianças e adolescentes são crimes que violam o direito ao desenvolvimento da sexualidade segura e protegida e afetam meninas e meninos em todo país.

O enfrentamento da violência sexual na infância e adolescência é um desafio que esbarra na ideia de que corpo infantil é objeto para uso de adultos. O crime tem respaldo também no pensamento machista de que, quando o corpo é feminino, seu uso e propriedade são de homens. A violência nesse caso é naturalizada, as vítimas culpadas e os agressores protegidos pelo silêncio de um assunto que ainda é tabu.

Segundo dados da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, 320 crianças são vítimas de violência sexual por dia no Brasil. De acordo com o levantamento feito pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, em 73% dos casos, o abuso acontece na casa da vítima e, em 40% dos casos, é cometido pelo pai ou padrasto.

A psicóloga e especialista em Gênero e Diversidade na Escola, Nelcirema Ferreira, diz que a ideia do machismo é muito forte, tanto nas relações de consanguinidade do estupro – quando o agressor é alguém do ciclo familiar -, tanto quando provém de uma relação “marital” – quando a criança é casada com um homem muito mais velho que ela.

“Se tem a ideia de que o corpo daquela menina não tem valor, como se ele fosse um objeto a ser desfrutado, independentemente de ter sua maturidade biológica, que não tem direitos. E, muito disso, está incrustado nessa cultura machista de menor valor ao corpo feminino”, diz a psicóloga.

Confira no Observatório TV a entrevista na íntegra.


André Romero, psicólogo que atuou no Centro de Referência Especializado em Assistência Social da Prefeitura de Macapá (CREAS Cidadania), conta que durante todos os seus anos de atendimento psicológico, nunca atendeu uma criança que tivesse sido abusada por alguém fora do vínculo familiar.

“O abusador/agressor é em 100% dos casos um membro da família”, conta o psicólogo.

Os especialistas consultados pelo Observatório apontam que, baseados na experiência no atendimento a vítimas, a violência sexual tem gênero e idade definidas: são meninas de 7 a 13 anos.

Nelcirema observa que chegam nas unidades de saúde muitas meninas no início da adolescência para fazer pré-natal.

 “Você vê chegando na Unidade de Saúde uma menina de 12, 13 anos, de mãos dadas de um ‘companheiro/marido’, que na verdade é o agressor sexual de 40, 50 anos”, relata ela ao apresentar uma situação muito comum em regiões do Norte do país.

De onde vem a violência?
Entende-se a violação dos direitos sexuais os crimes de natureza sexual, crimes que atacam a honra, crimes que envolvem a interrupção do desenvolvimento da sexualidade segura. O abuso sexual contra crianças e adolescentes se caracteriza através da exploração sexual, do exibicionismo e do contato sexual de pessoas adultas com crianças e adolescentes.

O psicólogo André Romero conta que o machismo é um grande responsável pela violação sexual de crianças e adolescentes. Apesar de que os casos mais relatados sejam de meninas, também há uma parcela de casos em que as vítimas são garotos.

“A questão do masculino para o garoto  é atravessado por esse olhar social de que tem que ser onipotente e forte, que não pode falar sobre essas situações, porque de acordo com a própria criança, ela vai entender que está expondo uma fragilidade que o homem socialmente não deveria ter”, conta o psicólogo.

Preferindo não ser identificado, J.A. apresenta seu relato como vítima de violência sexual. Durante a vida foi violentado em três momentos: quando criança por seu vizinho, por seu primo e por um amigo na adolescência.

“Eu era bem criança, tanto que minhas únicas memórias era o sofá que a gente estava e a luz do sol entrando pela madeira”, conta J.A.

Assim como J.A., existem milhões de casos no país. Segundo dados do Ministério Público do Paraná três crianças são abusadas por hora no Brasil.

Em Macapá, o número de crianças violentadas aumentou durante a pandemia do novo Coronavírus. O psicólogo André Romero conta que esse aumento não chega a unidades de saúde, devido à quarentena e às restrições no atendimento de alguns serviços.

“Infelizmente, em termos de notificação, hoje vai aparecer como se esse índice estivesse baixo. Mas, na verdade, as notificações estão baixas, devido à pandemia”, explica André Romero.

Traumas e desafios para superar as marcas da violência
O abuso sexual marca para sempre a vida de uma pessoa. Na infância, a violência é muito mais prejudicial. Dentre os efeitos, a criança terá dificuldade para lidar com sexualidade e relações sociais e afetivas quando adulta.

De acordo com a psicóloga Nelcirema Ferreira, a vítima de abuso sexual não se sente segura para falar do assunto, sente culpa e vergonha. 

A violência que acontece dentro de casa também agrava outro ponto da personalidade da criança, já que o local, que deveria ser espaço seguro e de aconchego, torna-se o lugar de violência e sofrimento.

A psicóloga Nelcirema Ferreira conta ainda que isso também altera a imagem da criança sobre si mesma.

“Alterando a autoimagem, altera a autoestima e ela se vê como alguém que não merece ser amada, porque fez algo errado, sentindo uma culpa”, explica ela.

J.A. relata que os abusos que sofreu causaram muitas sequelas que o acompanharam até a vida adulta. “Eu tive e ainda tenho problema de ansiedade, tenho depressão. Teve uma época da minha vida que eu não falava, não lembro disso, mas minha mãe conta que eu chegava em casa, comia, dormia, ia para a escola e não falava”, relata J.A.

Ele conta ainda que sua percepção de mundo ficou confusa, sentia raiva de tudo e todos e não conseguia se aproximar de pessoas do gênero masculino. Quando a adolescência chegou, J.A. relata que seus traumas vieram à tona.

“Tive traumas muito severos, como sentir atração sexual por tudo e todos, porque eu lembro muito dos meus traumas, nunca consegui apagar. Abusos deixam sequelas pra vida toda, eu nunca vou esquecer”, diz J.A.

J.A. lidou com seus traumas com tratamento psicológico, depois de muitos anos dos abusos ocorridos. “Por muito tempo, eu pensei que fosse normal, entende? Então, eu guardava pra mim e não contava pra ninguém, porque eu sabia que ninguém poderia entender”, conta ele.

O tratamento psicológico para as vítimas de violência sexual é importante. Nelcirema explica que o tratamento vem para resgatar a autoimagem e autoestima da criança, para que ela possa superar o trauma e ter uma vida a partir desse evento traumático.

“Nunca é fácil, porque algumas crianças carregam as marcas do abuso para o resto da vida, não conseguem ressignificar”, conta ela.

A psicóloga explica que a ideia de ressignificar é para que quanto mais cedo se tenha noção do abuso, mais cedo se possa fazer as intervenções necessárias, como o atendimento psicológico e social e o afastamento da vítima de seu abusador.

J.A. conta que, atualmente, lida melhor com seus traumas devido ao acompanhamento psicológico que recebe.

“Foram 4 anos de terapia e não é fácil. Meu psicólogo sempre falou que paciência é uma virtude e que eu precisava ser paciente, então hoje eu lido melhor. Mas, mesmo assim, ficaram traumas e sequelas”, diz ele.